Momento Terapia: Gordofobia
Os temas relacionados ao corpo sempre acompanharam meu campo de estudos. Desde os tempos de faculdade me envolvia em disciplinas e pesquisas relacionadas ao assunto, mais especificamente, a Anorexia Nervosa e Bulimia. O interesse pela obesidade surgiu posteriormente, num movimento espontâneo da minha carreira, que me colocou diante do intenso sofrimento psicológico de pessoas que se encontram fora do limite do seu “peso ideal”.
Em 2010 iniciei atendimento a pacientes em processo de cirurgia bariátrica, foi quando me dei conta dos números da obesidade em nosso país e no mundo e do impacto psicológico dessa condição na vida de milhares de pessoas.
Ao longo desses anos tenho ouvido todo tipo de relato de sofrimento, preconceito e discriminação. São informações que não aparecem nos exames clínicos e não podem ser mensurados em tabelas nutricionais, mas que fazem um estrago enorme na vida das pessoas que estão fora da curva “saudável” da população.
Temos refletidos, nos últimos textos da coluna, sobre a influência da sociedade (real e virtual) positiva e negativamente na vida dos indivíduos que a compõe. E com a obesidade, o cenário não é diferente, a sociedade que defende e valoriza o único padrão de beleza aceitável, cobra caro de quem não se enquadra nesse padrão.
O corpo se vê diante de dois portais: o corpo magro é sinônimo de sucesso, felicidade, realização pessoal e profissional, confiança, poder, sedução e um milhão de adjetivos. O corpo gordo, ao contrário, é tratado com deboche, fracasso, pouca força de vontade, desleixo, insegurança, feiura dentre outros adjetivos que de maneira subliminar ou escancarada são lançados em nosso imaginário. Logo, se estamos diante dessas duas portas, em qual delas o mundo parece ser mais divertido e atraente?
Cria-se a assim, um ambiente de desespero e horror para aqueles não foram “selecionados” para adentrarem a primeira porta. Criam-se mercados e sistemas que ajudam as pessoas a chegarem ao “paraíso”. O custo emocional disso tudo é elevado demais e tem um nome: GORDOFOBIA.
É o termo usado para se referir aos atos de violência psicológica e até física praticados contra pessoas obesas. A gordofobia é um exemplo do preconceito contra os que não se enquadram no padrão estético. Sem floreiros, é a falta de respeito com quem é gordo!
E quantos juízes temos atualmente apontando dedos e desferindo sentenças para todos os lados para todos aqueles que são “diferentes”, não é verdade?
A intolerância maior, mais uma vez, vai para a conta das mulheres. Um exemplo bem simples: estamos na praia, aproveitando o sol e mar, passa um rapaz ou senhor acima do peso de bermuda ou sunga e permanecemos ali aproveitando nosso merecido descanso, nem nos damos conta… Mesmo cenário, passa uma moça ou senhora acima do peso de biquíni ou maiô e a reação imediata é “ela não tem vergonha dessa barriga”; “olha quanta celulite”; “que baleia”; “como tem coragem de colocar um biquíni com um corpo desse”… O mais chocante, esse julgamento é automático, racionalmente sabemos que é feio e ofensivo dizer ou pensar tais coisas, mas não nos damos conta de que praticamos e reproduzimos um discurso de intolerância e ódio a uma pessoa que, assim como eu, está desfrutando do seu dia de lazer.
Algumas situações que ouço constantemente de mulheres que acompanho em psicoterapia e de situações que observo na nossa sociedade em geral:
– Intromissão = o corpo gordo é visto como domínio público, todos podem opinar: porque não se matricula numa academia? Já pensou em mudar seus hábitos alimentares? Por isso você não arruma um namorado! Desse jeito não será promovido! Você é tão bonita de rosto.
Nunca ouvi ou soube relatos de pessoas magras que tenham passado por tal situação de invasão.
– Gestos e olhares = o assento ao lado do obeso, nos transportes públicos ou em qualquer outro lugar é sempre o último a ser ocupado. O olhar de desespero quando um obeso se aproxima para ocupar um assento vago é quase automático. O olhar de vistoria e censura ao prato do gordinho na fila do restaurante é outro ponto negativo.
– Apelo consumidor negativo = moda plus size, itens que ocupam um espaço físico “diferenciado” nas lojas. Como se as mulheres fossem uma subcategoria de mulheres. Ela não é só a mulher ponto, ela é a mulher plus size. O uso do tempo em inglês é claramente uma tentativa de soar mais agradável, mas que a meu ver, só torna tudo pior.
– Gordos na mídia = são sempre os engraçados, bonachões, as empregadas domésticas ou mordomos, as sexualmente frustradas ou vorazes. Não me recordo de filmes, novelas ou séries em que personagens gordos tenham sido protagonistas sem a conotação descrita acima.
Não há como ignorar o sofrimento e danos psicológicos que a sobrevivência nesse ambiente de hostilidade provoca! Depressão, Ansiedade, Transtorno de Pânico, Transtornos de Alimentação, Compulsões e Vícios, Isolamento Social, Tendência Suicida, são quadros frequentes, desencadeados por quem sofre violência psicológica e que carecem de cuidados adequados.
Como falei inicialmente, acompanho pacientes em processo de cirurgia bariátrica, são pacientes que apresentam quadros clínicos bastante comprometidos, é bem verdade, mas observo, em muitos casos que a adequação estética se sobrepõe aos cuidados com a saúde.
Caber no manequim 38/40 não significa apenas se livrar do percentual de gordura que impregna os órgãos, a diabetes, os problemas cardíacos ou ortopédicos que o excesso de peso provoca. Caber no manequim 38/40 significa para muitas pessoas caber em um lugar subjetivo específico, livre de julgamentos, olhares e discriminação sofrida todo santo dia.
Porém, nem todo caso carece de cirurgia, pois temos muitas de pessoas que estão acima do peso por diferentes fatores, e que são clinicamente saudáveis. Para essa população o fortalecimento emocional se dá através da construção de um novo olhar e uma nova maneira de se relacionar com o próprio corpo.
Entenda que você pode ser mais forte do que se imagina e é possível rejeitar todo rótulo e imposição social. O esforço não deve ser unilateral! Por que você precisa se esforçar para consumir determinada marca? Será que não é dever dessa marca se esforçar para se adequar aos diversos tipos de consumidores? Sei que essa é uma questão de dinâmica bastante complexa, pois trata-se de uma mudança macro e não há como mensurar quanto tempo demoraremos para tal transformação. Mas já convivemos com movimentos interessantes de Empoderamento que sinalizam ser possível re-significar a nossa realidade de consumo.
O fortalecimento emocional passa por ações que podem ser adotadas no cotidiano, do tipo, manifestar a sua opinião frente as situações que te provocam descontentamento. Sabemos que muitos casos de gordofobia são vivenciados no ambiente de convívio familiar, entenda que falar sempre faz diferença, principalmente para quem fala, pois te lembra do lugar que você merece ocupar dentro de qualquer ambiente ou relação.
E esse lugar de pertencimento não pode, sob hipótese alguma, ser delineado a partir da forma física que você possui. É o seu direito e também o seu dever não permitir que isso aconteça.
Para aqueles que estão do outro lado da ponte e que, por algum motivo consciente ou inconsciente, já praticaram ou praticam algum tipo de violência psicológica contra pessoas obesas, comprometa-se a partir de agora a praticar a reciprocidade, trate o outro da mesma maneira como gostaria de ser tratado. Isso é suficiente e contribui para a construção de um mundo mais igualitário.
Para o filósofo hindu Jiddu Krishnamurti não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade profundamente doente. Use todo o seu potencial emocional para viver e ser feliz, independente do seu tipo físico, pele, cabelo e afins. Não desperdice o seu potencial tentando se enquadrar num modelo que te consome, exige tudo e te deixa sem nada, que te coloca num vazio existencial. Não são esse tipo de coisa que define quem de fato você é.
Não existem apenas dois mundos: o dos magros ou sarados bem-sucedidos e dos gordos fracassados, não caia nessa cilada. Você tem a liberdade para construir a sua própria realidade, cabe a você escolher quais elementos usar na sua construção. Descobrirá ao longo do processo que tem muito mais gente querendo construir e viver uma vida plena de significados, valores e propósitos do que querendo definir músculos e trincar abdômen.
Toda mudança, ajuste, adaptação é válida, desde que seja uma demanda intrínseca, não um rótulo ou um modelo que tentam vender ou convencer. Nenhum ser humano deve ser classificado de acordo com o seu corpo ou aparência e toda iniciativa para reverter essa prática é super bem-vinda. Esse é um dos caminhos possíveis para sararmos a nossa sociedade doente.
Imagens do texto: Pin-Up Hilda é uma criação do ilustrador Duane Bryers, Hilda foi uma pin-up atípica que enfeitou as páginas dos calendários americanos da década de 1950 até o início de 1980, alcançando alguma notoriedade nos anos 1960.